Jair A. Pauletto
O Singular do Plural
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O Resgate

Na estrada, sob o sol escaldante, segue a moto reluzente indumentada com uma jaqueta preta e capacete em cores quentes. Na garupa, o capacete decorado com adesivos de desenho animado, deixava perceber o seu conteúdo, bem como o assento da moto que favorecia a ela, por que adorava exibir o seu farto bumbum dentro de um pequeno chortinho amarelinho, comprado justamente para valorizar seu ponto forte nessas situações.  No pescoço e nas costas, a uniformidade do bronzeado que ia se intensificando no decorrer do caminho, era quebrado por uma finíssima tira do tecido que mal lhe cobria a frente. Agarrada feito carrapato acariciava com os seios as costas do piloto, tornando a viagem ainda mais agradável. Sensações, emoções, enfim, dia perfeito para se refrescar. Sem vento e nenhuma nuvem no céu, apenas calor, muito calor, clima ideal para o piloto acelerar ainda mais para chegar no mar de uma vez por todas.

Na curva da estrada, residia uma velha senhora que resistia às ordens das autoridades pra se mudar, área de risco diziam, mas era o endereço perfeito para catar o papelão, seu único ganha pão. Sozinha, tinha por companhia um porco de estimação, que, quando leitãozinho era um mimo, um docinho, porém agora, tão grandão e incomodava com freqüentes fugas. Lá foi o porco fujão pela estrada complementar a refeição e a velhinha desesperada foi resolver a situação. Quando de repente, a moto envenenada encontrou o porco na contramão, foi um deus nos acuda. A velhinha nem sentiu o calor do motor quando este se encontrou com sua testa. Um verdadeiro horror. A moto capotou, o piloto voou e a moça se arrastou pelo acostamento. O Capacete adesivado foi rolando a ribanceira com a mesma velocidade que a morte ceifara as três vidas. Já o porco, assustado, fuçava e lambia a testa ensangüentada da dona. A esta altura, já ex-dona, que se não fosse sua porquiçe poderia estar temendo pelo próprio futuro. O piloto todo arrebentado tinha os dedos de um dos pés no mesmo sentido do calcanhar do outro. O braço direito parecia ter sido feito com massa de modelar por uma criança com pouca habilidade, diante da anormalidade de sua curvatura. A desfiguração era tanta que os legistas teriam pela frente um trabalho tipo montagem de quebra-cabeça, daqueles com muitas peças. Foi um acidente horrível e lamentável, motivo de longos comentários por vários anos, talvez ultrapasse gerações.

A velhinha Maria foi a primeira a despertar para a nova realidade e logo percebeu o ocorrido, sentiu um arrepio deixando escapar um gemido, pois olhou o próprio corpo com a cabeça mutilada estirada no asfalto. Ao seu lado um guardião, amigo do outro plano, lhe segurava a mão prestando-lhe apoio. Bastou um olhar entre os dois e compreendeu a situação. Uma equipe chegou para auxiliar e conduziram-na para um hospital do astral, onde receberia o tratamento necessário, era o ingresso em uma nova etapa de crescimento. Sorriu, temeu um pouco pelo amigo porco, mas seguiu, entendendo que era o fim desta missão.

Enquanto isso, o jovem rapaz, sentado no acostamento, observava o corpo mutilado. Lamentou a imprudência e chorou copiosamente. A moça inconformada agarrada ao corpo inerte, desesperada tentava erguê-lo para voltar a andar. As equipes do astral prestavam o atendimento necessário e o rapaz, mais calmo, optou por aguardar a chegada do resgate ou de algum familiar, era seu livre arbítrio que os socorristas do outro lado sabiam respeitar. Porém, a moça desequilibrada lutava para permanecer no corpo, já que se recusava a entender o que as equipes tentavam esclarecer. Diante disso, seguiu-se o procedimento normal de remoção dos corpos pelas equipes médicas e demais autoridades da rodovia e os preparativos para o funeral. Um guardião acompanhava o corpo de dona Maria enquanto as equipes se dividiam na assistência a Josias e Certrina, pois esta, ainda grudada ao seu corpo físico e totalmente descontrolada precisava ser contida.

Josias, o rapaz imprudente, após algumas horas de velório e sempre acompanhado das equipes de desligamento e esclarecimento, entendeu que cada ato tem sua conseqüência, nada fica sem resposta e que a vida se encarregaria de lhe dar nova oportunidade, assim que tivesse merecimento. Em poucas horas, já estava flutuando sobre seu corpo físico quase na altura do teto, totalmente liberto. Agora, lá do alto, podia “escanear” mente e coração dos presentes e não demorou muito a entender o quanto machucou corações queridos e também o quanto era odiado por alguns e amado por outros. Agora tudo estava tão claro, a compreensão era outra e era tão evidente a diferença entre o modo como via as pessoas antes e o agora. Permaneceu por ali, cada vez mais próximo ao teto, por mais algumas horas, pois precisava se fortificar com as orações dos familiares e amigos presentes no velório. Resolveu partir assim que se sentiu mais forte e seguro para enfrentar a nova etapa, deixando Certrina aos cuidados das equipes espirituais. Não havia o que ele pudesse fazer naquela hora, agora e como sempre o caminho era individual. No seu caso, era seguir para o plano astral e se preparar para a nova jornada.Junto aos corpos dos que já haviam aceitado a mudança de plano, permanecia um guardião para evitar que os magos das sombras enviassem seus seguidores para roubarem o ectoplasma ainda presente nos cadáveres.

Os corpos foram devidamente enterrados seguindo os rituais religiosos e tradicionais. Josias e Maria já recebiam lá do astral a energia das últimas orações do funeral. Certrina desesperada, via seu corpo sendo sepultado sem conseguir fazer com que alguém a ouvisse ou fizesse qualquer movimento para impedir. Terminado os sepultamentos, todos se afastaram e ela desesperadamente tentava cavar a terra com as próprias mãos para desenterrar o seu corpo. Totalmente transtornada, passou o resto do dia cavando. Porém à noite, percebeu que havia outros iguais a ela que também lutavam desesperadamente para reaverem o próprio corpo, só que estes já apresentavam sinais de deformação devido ao longo tempo em que permaneciam naquela infrutífera tentativa. Com o passar dos tempos percebeu que alguns, à medida que iam ficando mais lúcidos, eram resgatados por seres que vinham do alto.

 Mas ela acreditava que não poderia “viver” sem seu lindo corpo físico, reforçando cada vez mais o seu desequilíbrio mental. Às vezes saia à noite vagando por locais sem movimento. Seu local preferido era uma casa abandonada nas proximidades do cemitério.  Até que um dia, alguns rapazes boêmios descobriram que a velha casa podia ser o local perfeito para fumar um daqueles cigarrinhos inocentes.  Centrina, um verdadeiro fantasma desfigurado, levou o maior susto com a presença dos jovens, abandonando o local apressadamente e nunca mais se aventurou a ultrapassar os limites do cemitério.

Passaram-se vários anos e seu corpo espiritual já apresentava graves deformações, quando a consciência começou a serenar-se devido às energias enviadas pela mãe, que já fazia parte do plano astral e acumulara méritos para iniciar o processo de resgate da filha. Centrina também já despertava para o processo de aceitação, fruto da observação e do exemplo dos “amigos” que ao aceitarem e serenarem suas mentes, eram resgatados num processo que envolvia muita luz. Nestes resgates ocorria à reconstituição do corpo espiritual e os amigos pareciam partir felizes. Jamais nenhum voltou, o que podia ser um sinal de que estavam em um local melhor. Mas, numa noite, sentada entre os vasos de flores abandonados, enquanto observava alguns novos moradores tentando resgatar seus corpos, assim como ela fazia há anos e deixara de fazer a poucos dias, percebeu a chegada de mais uma daquelas equipes de luz. Identificou entre eles a própria mãe, que vinha ao seu encontro de braços abertos. Agarrou-se a ela e desabou a chorar. Enquanto era acariciada, ouvia da mãe as doces palavras; “filha amada, chegou a sua hora, vamos embora daqui, por que muitos amigos te esperam“.

 

Jaìr A Paùlétto
Enviado por Jaìr A Paùlétto em 28/11/2007
Alterado em 24/04/2013
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