Jair A. Pauletto
O Singular do Plural
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Afrodite

A mochila se tornava cada dia mais pesada. Nos últimos dias vinha se desfazendo de algumas coisas, apesar de necessárias. A enorme planície levemente ondulada, já permitia que se avistassem as primeiras construções, que refletiam os raios do sol dos últimos dias da primavera.

A poeira da estrada dançava com o soprar do vento, formando pequenos redemoinhos a sua frente que lhe atingiam os olhos parcialmente,protegidos pelos pequenos óculos escuros. A Estrada estendia-se entre as extensas e verdejantes plantações, afunilando-se até desaparecer na primeira ondulação da planície, para depois reaparecer logo adiante, exatamente como fazia em seus desenhos quando criança. Talvez estivesse diante de um desenho lá do alto ou quem sabe um anjo da quarta ou quinta série teria desenhado aquela paisagem e Deus emocionando, o tornou real para ele naquele instante. As pernas já emitiam sinais de que era hora de parar, as costas pareciam carregar o mundo na pequena mochila, assim como a garganta empoeirada suplicava por um pouco d’água. Lívio acostumado a longas caminhadas, sabia que precisava manter a concentração e seguir em frente ou teria que passar à noite na estrada, mas, recuperou as forças ao avistar uma coluna de fumaça que parecia vir de um pequeno casebre no topo da colina, próximo à cidade.

A fome que vinha sendo enganada há alguns dias, começara a se manifestar com toda a força. O estômago parecia estar grudado nas costas e, a água que antes servia para aliviar a fome, balançava as paredes do estômago a cada passo, parecendo um barril de água quando transportado em uma carroça.

A esperança de matar a fome estava naquela pequena casa, que conforme ia se aproximando mostrava sua fragilidade, logo percebeu que a residência não passava de um velho ônibus transformado em casa. A carcaça do ônibus ganhara alguns complementos com tábuas e, como algumas telhas avançavam o telhado, formavam uma pequena varanda. Toda a estrutura, era suspensa em quatro pilares de pedras irregulares empilhadas de forma desalinhada, onde as galinhas ficavam ciscando, enquanto uma cadela que não parava de latir o recepcionava.

Lentamente Lívio foi se aproximando da escada de apenas cinco degraus, quando de repente, por detrás da cortina, da pequena janela, um vulto com voz feminina, gritou:

- O que você quer?  Aqui não tem nada para vagabundo parar.

Surpreso com aquela recepção parou subitamente e gaguejando perguntou:

- Tem alguma coisa para matar a fome, ainda não comi nada.

A mesma voz, mas agora vindo lá de dentro, ouviu:

- Não tenho nada, se manda rapaz, meu marido está para chegar e não vai gostar de te encontrar.

- Por favor, senhora, qualquer coisa serve, já estou há dois dias sem comer.

Não obteve resposta, mas ficou alguns minutos parado em frente à casa, enquanto sorvia o delicioso cheirinho de comida que vinha lá de dentro, enchendo a boca de saliva e imaginado um delicioso jantar. Observou a beleza daquela árvore que cobria parte do telhado com suas flores vermelhas, pois, adorava flores vermelhas e, enquanto tentava descobrir que planta seria aquela, ouviu o ranger da porta e uma mulher que aparentava ser alguns anos mais velha, lhe dirigiu um longo olhar, para depois falar:

- Você não entendeu, vá embora. Meu marido e meu filho foram à cidade buscar o jantar e não quero você aqui, quando eles chegarem.

- Mas senhora! Só quero algo para comer, não vou incomodar.

- Já falei, não tenho nada, pois, o jantar ainda esta por chegar.

- Não acredito que a senhora não tenha nada que não possa ajudar a matar a minha fome, por favor! 

Sentou-se no segundo degrau da escada, não iria desistir tão fácil, ainda mais com aquele aroma de comida que o enchia de coragem. Mas, a mulher voltou-se para dentro da casa, acabando com as esperanças de Lívio.

Alguns minutos depois, retornou e sentou-se no topo da escada, um pouco de lado de forma que ficasse de frente com ele, que estava alguns degraus abaixo. Trazia um tomate tipo italiano que, antes de levar até a boca, esfregou-o na barra da saia, bem como sua mãe fazia com as maças quando ele era criança.

A suculenta bocada fez espirar algumas sementes que se alojaram no alto da bochecha, quase lhe atingindo os olhos. O tomate parecia uma refeição completa diante da voracidade de sua fome. Ela mordeu o tomate novamente, agora lentamente, mastigava e mastigava que parecia uma vaca ruminando, e assim fez por mais algumas vezes até consumi-lo totalmente. Percebendo que Lívio a observava intensamente, falou:

- Sobrou do molho que estou fazendo.

- Então esse cheirinho gostoso é do molho...

- É, alguns tomates, uma cebola e umas batatas bem picadas, tornam-se um molho consistente, após algum tempo no fogo, assim quando a massa chegar estará pronto o jantar.

- Posso pedir um prato deste jantar?

Sem falar nada, levantou-se e foi até lá dentro e retornou em seguida, atirando um tomate para Lívio, sentando-se na mesma posição. Ele o agarrou com a destreza de um grande goleiro, mordeu aquele tomate de um vermelho intenso, polpa grossa, quase açucarada, como se fosse uma iguaria dos mais finos restaurantes que jamais pisara. Em poucos segundos já havia engolido tudo, silenciando um pouco o estômago. No topo da escada a mulher olhava-o fixamente, e assim que os olhares se cruzaram ela falou:

- Vai andando rapaz, é tudo o que podia oferecer, os tempos estão difíceis por aqui.

Falou isso, mas lhe sorriu alegremente. Lívio que até então evitava qualquer olhar direto, fixou o olhar naqueles vívidos olhos verdes amendoados, enquanto ela continuava sorrindo. Aquela sustentação de olhares e o sorriso encantador despertaram-lhe a atenção e começou a observar atentamente aquela mulher, estranha. Da posição em que se encontrava, ela parecia desproporcional, era como se estivesse observando uma imagem, cuja câmera focasse as partes mais próximas à lente. Destacavam-se os seios, a face e as coxas que podiam ser observadas por debaixo da saia.

Aquelas pernocas brancas atiçavam-lhe a libido, aliás, ele tinha verdadeira fascinação por pernas brancas, uma raridade em um país tropical, para quem tem um gosto diferenciado. As coxas alvas eram fartas, pois era uma mulher de formas generosas, perfeitamente definidas em escalas proporcionais que a tornavam ainda mais desejável. No semblante, viam-se traços cômicos com naturalidade que estampava alegria no ar.  Dava para ver que era uma mulher feita para dar conforto a um homem. E, após observá-la por algum tempo, ele não tinha dúvida, aquela era uma mulher atípica, realmente muito bonita. Agora parecia mostrar-se adorável, apesar de áspera no trato inicial.

A posição privilegiada e a postura com que ela havia se posicionada, lá no alto da escada, permitiam que as partes abaixo da cintura pudessem ser observadas confortavelmente. Lívio que tentara acalmar a fome com o tomate, agora despertava uma nova e incontrolável fome.

Ela sabia que estava sendo observada, mas parecia gostar e facilitar as coisas para Lívio que, visivelmente perturbado, não sabia o que fazer. Ensaiou mentalmente várias palavras para dirigir àquela formosura no alto da escada. Agora tudo ao seu redor havia desaparecido, a mulher agreste acabara de se transformar numa deusa e a fome a essa altura já era outra sensação, ou seja, só sentia o pulsar do coração. E, neste mar de agitações, mas sem desviar o olhar da bela mulher falou:

- Obrigado pelo tomate, senhora.... A propósito, qual o seu nome?

- Afrodite! E agora vai embora rapaz. Vá.

Lembrou-se imediatamente da deusa grega do amor, do sexo, da regeneração, da fecundidade, do casamento e da beleza corporal. Nossa! Não havia nome mais apropriado, tudo combinava com seu estado interior. Era realmente uma deusa, e ele a queria naquela hora. Estava diante de um desejo quase incontrolável, sentia seu corpo ferver, e tudo o que ele queria era apossar-se daquelas doces carnes naquele momento. Realmente não poderia haver nome mais apropriado, era uma verdadeira deusa, do amor, do sexo...

- Você é uma mulher encantadora e maravilhosa, Afrodite.

- Mas não sou para seu bico meu rapaz, vai andando, vai.

Calmamente Lívio começou a andar. Afrodite conhecia os homens, sabia o que se passava na cabeça do rapaz, vinha agindo premeditadamente desde o momento que sentou na escada. Sabia que podia perturbar o pensamento de um andarilho e faminto como Lívio. Tivera um irmão que se perdera nas estradas na vida em busca de ”aventuras amorosas e adrenalina”. Viu no pobre rapaz o irmão amado. Sabia que não havia como argumentar contra aquela busca. Busca que precisava ser feita interiormente, não nas aventuras das estradas. A ilusória busca do local onde o vazio existencial seria preenchido.

Afrodite que uma década antes deixara de viajar, nos caminhos da poeira branca, sabia o quanto essa busca era difícil e muito mais difícil ainda superá-la. Agora acreditava na força do amor e da família que amava, apesar das dificuldades, que às vezes ameaçavam o jantar. Pretendia, com isso, fazer Lívio pensar, e, quem sabe redirecionar sua busca. Imaginava que Lívio poderia pensar em se fixar e aos poucos se transformar internamente e quem sabe construir um lar como o dela. Ela estava representando o tipo de mulher, bonita e gostosa que ele poderia ter a seu lado. Pensava que assim poderia fazer o andarilho parar e principalmente aliviar a culpa em relação ao irmão que se perdera nas estradas. Uma maneira um pouco exibicionista e um tanto torta para manifestar suas intenções nobres.

Enquanto terminávamos de arrumar as mochilas, ouvi atentamente o relato das intenções de Afrodite. Atribui a longa exposição àquele lugar, que apesar das modificações, a velha “casa”, a fez reviver momentos e emoções do período dedicado à vida doméstica. E ao poucos, como que matando a cede com um conta gotas, também acabei conhecendo um pouco mais da misteriosa Afrodite.

Havia sido uma parada revigorante, e após o reforçado café, estávamos novamente prontos para seguir adiante. Ela se despediu do filho que iria para a escola com a madrasta, colocamos as mochilas nas costas e retomamos a caminhada na estrada empoeirada.

A poeira ardendo nos olhos me fez lembrar que nesses lugares o tempo parece passar mais lentamente, e tive a impressão de estar caminhado ao lado do andarilho Lívio. Já Afrodite, alguns passos a minha frente, alegremente assobiava uma canção desafinada.

Jaìr A Paùlétto
Enviado por Jaìr A Paùlétto em 07/11/2007
Alterado em 08/11/2007
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