Jair A. Pauletto
O Singular do Plural
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Textos
A Dama do Coletivo

A esposa lhe sorri pontualmente às sete horas da manhã. Vitorino rotineiramente toma café, e após quarenta minutos, pega o ônibus com destino à empresa onde trabalha.
Durante sua jornada, confere cálculos e efetua registros contábeis com afinco e dedicação. No final da tarde, retorna para casa e encontra a esposa, que já está a sua espera, para assistirem à novela das sete.
Enquanto divide seu tempo entre o jornal e as crianças, sua mulher prepara o jantar, e menos de duas horas depois, vai dormir.
Há mais de vinte anos Vitorino mantém essa rotina. É um homem trabalhador, responsável, um pai e marido exemplar, como idealizado pela mãe.
O nome foi escolhido em homenagem a chegada do filho homem, após cinco mulheres. Também pela esperança de que se tornasse um homem próspero, vitorioso, e especialmente virtuoso. Se o nome ajudou, não sabia dizer, porém, sabia que ser exemplar às vezes beirava o insuportável.
Há quarenta anos não desapontara ninguém, mas naquela segunda feira, a semana parecia começar diferente. O creme dental finalmente havia mudado aquele gosto de remédio fora substituído por um gel dental sabor juá.
No café, não precisou comer aquele insuportável papaya e, ao chegar no ponto de ônibus, também percebeu que estava de sandálias e calça jeans. Por um momento ficou assustado, mas não havia tempo para voltar, até porque não admitia a hipótese de chegar atrasado.
Ao entrar no ônibus, precisou confirmar com o motorista se realmente aquele dia era segunda-feira, pois percebeu que havia muitos lugares vagos. Sentou-se discretamente próximo a saída, tentando imaginar o porquê daquele “vazio”, isso se não fosse interrompido por uma voz delicada, suave e aveludada. Dizendo:
- Bom dia! Posso? E apontava para o assento vago ao seu lado.
Engasgado, respondeu:
- Claro, claro, fique a vontade.
Demorou um pouco para acalmar-se, afinal, havia vários lugares e ela resolveu sentar justamente ao seu lado.
Há anos, muito discretamente, apenas observava aquela linda moça que tomava o mesmo ônibus todos os dias. Porém hoje, seu instinto lhe dizia que iria além.
Sempre a percebia como uma deusa, das que não permite ser vista pelos seus discípulos. Observava suas curvas, seu modo de vestir, seus cabelos longos, a leve sombra nos olhos combinado com a roupa, enfim, no que lhe era permitido, conhecia os mínimos detalhes.
Por alguns segundos os ruídos do universo pararam. Só conseguia ouvir a própria respiração. A adrenalina comandava o corpo. Sentia-se totalmente fascinado e embriagado, não somente pelo perfume que a passageira usava, mas também pela sua graça e beleza.
Num impulso, saiu um ahannnn.
Ela fixou-lhe o olhar e imediatamente sentiu-se nu, totalmente desprovido, em pleno pólo norte.
Percebendo seu nervosismo ela falou:
- Você esta diferente hoje.
Como assim, diferente – ficou pensando e procurando a melhor reposta, enquanto voltava a sentir o calor em seu corpo. E, neste meio tempo, como não conseguiu pensar em nada, achou melhor responder com outra pergunta:
- Como diferente?
- Parece mais alegre, mais feliz...
Mal ouviu a resposta, e logo conclui que vinha sendo observado, isso demonstrava que ela tinha algum interesse.
- A sorte parece estar sorrindo pra mim hoje, pois estou em sua agradável companhia - respondeu refeito do susto inicial.
Ficou surpresa com a resposta. Para alguém que se limitava a observá-la à distância, essa resposta podia ser considerada ousada.
Gostava de pessoas ousadas e resolveu provocar.
- Tenho observado que você fica me observando de longe, você esta me vigiando ou é um caça talentos?
- Nenhuma das opções, acho que posso me incluir, como mais um de seus admiradores, até então, como direi... discretos.
- Como mais um, o que?
- Admirador – e continuou
-Se tem algo que sei fazer muito bem é observar. A vejo todos os dias e percebo a admiração que você desperta nos homens deste ônibus.
- Eu? Você é exagerado.
- É, você mesma. Em especial, porque sabes valorizar muito bem seus generosos atributos.
Sem sombra de dúvida, o dia estava atípico. Estava se desconhecendo com aquele palavreado todo e com tanta objetividade. Vitorino jamais, sequer se permitiu pensar em outra mulher com alguma “outra intenção”. Agora estava com todas as intenções possíveis. Queria muito aquela mulher. Vitorino perdera totalmente o controle. Estava sendo comandado pelos hormônios, ou sabe-se lá o que, mas definitivamente não era a razão.
Ela sorridente retribuiu.
- Você que é muito atraente, sou fascinada por homens assim. Do tipo, certinhos.
Não acreditou no que ouviu, havia anos que a única mulher que o elogiava, era sua própria mãe. Mas como mãe não vale, sentiu-se no paraíso, porém a face parecia um ferro em brasas.
Procurou conter-se, e em seguida respondeu:
- Você que é uma mulher fascinante, charmosa – e, apesar dos poucos minutos de diálogo, arriscou; – e inteligente.
- Obrigada!
Aproveitou que estava com coragem e agradando, continuou.
- Você é a mulher dos sonhos de qualquer homem. O meu, por exemplo.
- Você deveria lutar pelo seu sonho, disse ela.
Ao ouvir essas palavras, o sinal ficou verde, não só para o coletivo. Quando percebeu a língua, idiotamente, já havia se soltado.
- Você quer dizer que posso lutar por você?
Ela suspendeu lentamente os ombros e lançou um leve e tímido sorriso de afirmação. Agora, Vitorino flutuava.
- Não brinque assim comigo.
- Brincar com você? Jamais faria isso. Sou uma mulher séria.
Deixou escapar um sorriso malicioso, e levantou-se para descer.
Ainda incrédulo com tudo o que havia acontecido, viu sua deusa deixar o ônibus. Imediatamente sentiu que não podia deixar aquela oportunidade escapar. Desceu apressadamente e alcançou Talía poucos passos depois.
Como se já o esperasse, sentiu a mão de Vitorino no seu ombro, enquanto internamente explodia de alegria. Teve medo que aquele momento pudesse ser fruto do desejo que despertava nos homens, mas seu instinto lhe dizia que aquele era o homem certo.
Não era uma mulher com medo de amar. Sabia que o amor poderia florescer em pleno deserto. Sentia que o amor era o mais forte e fiel dos seus instintos, que poderia regá-lo diariamente, além de oferecer um terreno fértil para crescer. A fé no verdadeiro amor que sempre a acompanhara, dava sinais que seu desejo seria atendido.
Com a respiração um pouco alterada, Vitorino apertou-lhe o ombro direito e falou:
- Devo estar louco, mas sinto que estou apaixonado por você.
- A loucura é companheira do amor - respondeu Talía, e continuou andando.
Ele abriu um sorriso que não sabia possuir, mas fingiu-se de desentendido.
- Como assim?
- Só o amor transforma e eleva o ser humano, e quando não o manifestamos, parece nos enlouquecer.
- É, é mesmo, respondeu chocado com a resposta.
- Sim, o amor é muitas vezes insensato quando tem oportunidade de manifestar-se.
- Mas como o amor pode surgir assim rapidamente e ainda encontrar reciprocidade?
Neste momento, Talía teve certeza que aquele homem não entendia nada de amor, e explicou:
- O Amor é único, mas se manifesta de várias formas, ou melhor, o homem acredita que ele esteja presente em várias situações da sua vida, que na verdade está, mas não está verdadeiramente.
O amor, não é querer o outro para o nosso bem. É amar o outro para o bem dele. Percebendo a surpresa e ao mesmo tempo o interesse de Vitorino, continuou:
- Esse é um tema muito amplo. Costumo dizer que é aquele tipo de coisa que, se não me perguntarem o que é eu diria o que é, mas se me perguntarem não saberia explicar. Porém, mesmo assim, vou tentar. Pensou por alguns momentos e disse:
- Penso que, se amar não é querer o outro para o nosso bem, então como amar o próximo como a si mesmo? Acredito que devemos sim, amar para o nosso bem, é claro que a diferença é não amar somente para o próprio bem, pois isso seria egoísmo, e não amor.
Vitorino esforçava-se para acompanhá-la naquele raciocínio. Ela percebeu e continuou.
- Amar o outro como um objeto, querer possuí-lo, consumi-lo desfruta-lo como se gosta de um bom vinho ou de uma carne, é o amor atribuído ao deus grego Eros. Eros é o amor que toma que devora que quer para si, que é egoísta. Enquanto o outro amor, o verdadeiro amor Ágape, como os filósofos o distinguem, é o amor que respeita que deseja, ainda que contra o desejo que se tem do outro. Ágape é o amor que dá e que protege, é o amor da amizade, da caridade e benevolência, é o amor puro.
Surpreso com as palavras de Talía, queria dizer-lhe que o sentimento que tinha por ela, era Ágape. Enquanto o cérebro parecia procurar o local mais seguro para guardar aquelas palavras, requisitando toda a memória para tanto, lentamente conseguiu falar.
- Tália! Estou começando a perceber que o meu sentimento por você está além da atração, da simpatia, do desejo, da contemplação. Acho que sinto amor por você, e se entendi bem, deve ser esse tal de Ágape.
Ela sorriu, porque aquelas palavras eram a confirmação de que finalmente iria viver o amor que tanto desejava, respondendo:
- Eu sabia, eu sabia – gritava alegremente - eu sabia desde o nosso primeiro olhar. Tive certeza que era você. Esperei por muito tempo para ouvir isso, meu amor.
- Qual amor? - Perguntou provocativamente.
- Ágape é claro, meu amor, Ágape, mas com algumas pitadas de Eros, boas pitadas de Eros – acrescentou.
Lá longe, uma voz familiar o desperta, e a sua frente o velho sorriso pontual.
Mecanicamente toma o café, e, ao escovar os dentes, percebeu que o creme dental continuava com aquele gosto de remédio.
Porém, após escrever esta última frase, Vitorino iradamente me indaga;
- Com licença, senhor narrador.
Surpreso, respondo.
- Pois não. Vitorino, o que foi?
- Com todo respeito por ter me criado, mas esse desfecho é um absurdo.
- Como um absurdo, eu decidi que vai ser assim e ponto.
- Depois de tantos anos agüentando aquela maldita rotina, e agora que aquela gata maravilhosa esta na minha, você me deixa sonhando.
- Calma Vitorino. Não é assim que se fala. Esse conto não admite essas palavras grosseiras. Agora você esta num novo dia, quem sabe algo ainda possa vir acontecer...
- Seu,... em respeito ao leitor acho que o senhor escreveria.....
- Olha o respeito, já falei.
- O senhor, é um verdadeiro, sexta, quarta e décima sexta letra do alfabeto.
- Olha a baixaria Vitorino, não foi assim que sua mãe lhe educou, exijo respeito. Sou o seu criador.
- É o senhor que não me respeita. Por um acaso sabes o que é desejar uma mulher anos e anos e, agora que descobri o amor, você me deixa aqui, escovando os dentes, sabor juá. Ah! Por favor!
- Mas Vitorino, você é um cidadão exemplar, não é de perder a cabeça por uma mulher.
- A Talía não é uma mulher, o senhor sabe que ela é a senhora mulher e tem mais, agora que ela deu mole, eu peguei gosto.
Para acabar com a discussão, e perplexo com a reação, resolvo ser mais diplomático.
- Com esses modos, você vai acabar perdendo a Talía e eu a paciência. Lembre-se que ela se sentiu atraída por você justamente por ser “certinho”.
- Não venha com essa conversa, quero ficar com ela, estou apaixonado.
Era minha primeira experiência com um personagem revoltado, não estava conseguindo acalmá-lo. A surpresa com tamanha reação, abortou a minha criatividade. Precisava fazer algo para acabar definitivamente com essa discussão, antes que o leitor também se revoltasse. Então falei:
- Ok! Vou trocar o sabor do gel dental, e acrescentar... tinha certeza que aquele dia, seria o primeiro dia da sua nova vida, com Talía, é claro.
Vitorino cuspiu o creme dental e começou a assobiar, e depois... bom, achei mais prudente digitar o ponto final.





Jaìr A Paùlétto
Enviado por Jaìr A Paùlétto em 14/05/2007
Alterado em 24/01/2008
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