Jair A. Pauletto
O Singular do Plural
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Textos
Cadeia Alimentar

Quando a água parou de pingar do chuveiro, Susã decidiu que não iria se abater e que seria capaz de transformar aquele episódio em um pouco de luz em seu crescimento espiritual.  Então, simplesmente pegou a toalha e secou-se assim mesmo. Isso foi um pouco desconfortável, afinal o corpo estava todo ensaboado e o cabelo parecia estar oleoso, contudo nada que não pudesse suportar. Também procurou transformar em luz o fato de ter sido bruscamente fechado no trânsito e ver, na garagem, a vaga invadida pelos carros ao lado, dificultando o estacionamento e quase o impossibilitando de sair do veículo.
Na confortável sala do décimo terceiro andar, uma relaxante cadeira o esperava, aliás isso era o que havia de melhor no seu novo trabalho. O desafio e o aprendizado que tanto procurava, e que necessitava para sentir-se vivo, não habitavam aquele prédio, sequer havia sinais que um dia estivera em algumas das inúmeras repartições daquele endereço.
Público e privado, consistentemente diferenciados conforme interesses, poder, bajulação, status e força, tudo interligado e explicitado conforme conveniente. Nada diferente de outros endereços estabelecidos para atender as necessidades da população.
Ali, alguns trabalham demasiadamente,  outros, pouco produzem, a isonomia é apenas financeira. A diferença está na distribuição dos privilégios e na alimentação do ego. Aliás, o ego é muito astuto, ele se disfarça de altruísmo, comprometimento e até mesmo profissionalismo para não ser percebido e assim garantir sua alimentação.
Envolto nestes pensamentos Susã, aguardava o elevador que o conduziria na última etapa do tumultuado percurso para chegar à sala, alguns minutos o separavam da relaxante cadeira.
Abriu a porta e viu a mesa abarrotada de papeis para despachar, sentiu-se satisfeito, o desafio que tanto desejava poderia estar entre aquelas demandas. Não se conteve e, mesmo antes de curtir o conforto da convidativa cadeira, começou a olhar os papéis, mas logo percebeu que ainda não era desta vez que encontraria o que buscava.
Atirou-se na cadeira e ficou aguardando o movimento começar. Completamente relaxado, sentiu o peso do corpo desaparecer. E, em pouco tempo, estava nos braços de Morfeu.
 No mundo de Morfeu, uma estranha criatura de cartola, discursava entusiasticamente em um amplo auditório, vazio. A eloquência do discurso fez com que dirigisse sua atenção às palavra do solitário homem.
Estranhamente, era a continuação do seu pensamento anterior quanto ao ego, as palavras encaixavam-se perfeitamente. O homem no púlpito dizia:
- Sabedores, consciente ou inconscientemente disso, os gestores aproveitam-se dessa fraqueza humana e alimentam o ego dos trabalhadores para que continuem motivados a produzindo o que desejam. Raras vezes o que almejam contempla, de forma razoável, os interesses pessoais do gestor e do trabalhador, mesmo que a finalidade seja socialmente importante e até mesmo vital.  Quando isso ocorre, ou seja, quando o trabalho proposto visa beneficiar uma determinada comunidade, por exemplo, o que torna a causa aparentemente justa, nobre e solidária, é a vez do ego do gestor se alimentar. Portanto, trata-se de uma relação de mutualismo, o líder alimenta o ego do servidor fazendo com que continue produzindo, enquanto ele se alimenta da nobreza do benefício social.
Contudo, a questão é muito mais ampla,  tão ampla que é impossível vencê-la aqui, portanto vamos analisar apenas e assim mesmo, superficialmente, a questão dos trabalhadores que não se satisfazem em alimentar o próprio ego com esse mecanismo ou por qualquer razão, não têm o ego alimentado. Esses simplesmente não produzem, ou produzem muito aquém do seu potencial e, assim, transferem mais atividades aos que produzem. Consequentemente tornam os produtivos ainda mais necessários que, por sua vez, fazem-se merecedores de mais alimento para o ego.
Trata-se de dois círculos viciosos alimentados pela satisfação de egos. O primeiro composto pelos que não trabalham que, ao perceberem que não sofrerem qualquer punição e nem têm qualquer estimulo, continuam a produzir cada vez menos, sem temerem consequências. O outro é dos que produzem e são cada vez mais demandados, assim garantem a alimentação do próprio ego, na falsa justificativa de estar levando o mundo nas costas. 
A manutenção de tais círculos viciosos e mantida e avalizada pelas lideranças, cujo beneficio maior, também estaána alimentação do próprio ego, criando-se assim um terceiro circulo. Esse tem como principal argumento para justificar-se, o fato de alguns poucos produzirem, portanto nada mais lógico e coerente demandar ainda mais os que produzem, afinal,  o produção não pode parar, os prazos precisam ser cumpridos.  Enfim,  o mundo não pode parar. Essa é uma argumentação frágil e inconsistente, pois poderiam quebrar este circulo e conseqüentemente os dois primeiros, simplesmente modifica a própria conduta de líder.
O sucesso em liderar, vai além do conhecimento técnico, acima de tudo é preciso conhecer e saber interagir com o ser humano ... .
Uma brisa deu lugar a um forte vento e a janela bateu violentamente, tirando-o do mundo dos sonhos. Correu imediatamente para fechar a janela, afinal era proibido abrir as janelas, inúmeros adesivos alertavam para não fazê-lo, tudo em nome de manter a climatização do prédio. Olhou pelo vidro espelhado as grossas nuvens negras se multiplicarem rapidamente, era um sinal de que a chuva estava para chegar. Associou as nuvens negras do céu com as que o atormentaram logo cedo, sentiu um agradável sensação de que tudo estava prestes a se renovar, pois assim como a chuva vem para lavar a sujeira e renovar a vida, entendeu que iria purificar as próprias energias.
Renovado pelos novos pensamentos, voltou para a mesa e começou a analisar calmamente a pilha de documentos que o aguardavam. Repentinamente, a secretária invade a sala e corre para junto dele.  Em seguida,  aparece um sujeito empunhando uma arma gritando para a moça apavorada.
- Se não ficar comigo não vão ficar com mais ninguém.
Entre o estampido e sentir a camisa molhada na altura do peito foi uma fração de segundos. Percebeu que uma luz forte  cegava-lhe os olhos e mais nada.
Um corpo imóvel, estendido no chão com os olhos saltados fixos na luminária, era o desfecho daquele tiro ciumento.

Jaìr A Paùlétto
Enviado por Jaìr A Paùlétto em 22/03/2012
Alterado em 26/05/2012
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